Embora a certeza mais absoluta da vida seja a morte, temos muita dificuldade em aceitar essa realidade. Certamente, em razão dessa dessa dificuldade, evitamos pensar, falar ou fazer testamento e isso resulta que apenas 5% da sucessão hereditária é feita com disposição de última vontade, ou seja, pelo testamento.
No Brasil, onde esse costume de planejar a destinação dos bens não está incorporado na cultura jurídica, a elaboração de testamentos, de forma excepcional, atingiu números elevados no ano de 2023, considerando 16 mil testamentos até 13 de junho do mesmo ano.
Segundo a tradição do Direito Civil, testamento é o ato jurídico revogável, personalíssimo e solene pelo qual, alguém capaz e de livre e espontânea vontade dispõe sobre a sua última intenção para questões patrimoniais ou não, com o objetivo de ser cumprida depois de sua morte.
Quem pode realizar um testamento? Tem prazo para sua abertura?
R: A capacidade para realizar um testamento se inicia com os 16 anos de idade; ainda, os testamentos não estão sujeitos à prescrição ou à decadência. Assim, mesmo que tenha passado décadas entre a sua elaboração e a morte do testador, ele se mantém válido, se não tiver sido revogado. Os testamentos que que tratam apenas de pequenos valores ainda são denominados de codicilos, o que popularmente são chamados de ” testamento anão”.
Apesar de toda evolução tecnológica, o direito das sucessões ainda não chegou na terceira revolução tecnológica, que é a digital. Com tanta tecnologia à disposição, é inadmissível pensar que não podemos traduzir nosso legado e nossa última vontade em vídeo-testamento, por exemplo. Embora não haja previsão legal dessa modalidade de testamento, nada impede que o façamos, no mínimo para reforçar ou confirmar um testamento particular, evitando-se assim sua invalidade. Ora, se o Direito deve proteger mais a essência do que a forma ou formalidade que o cerca, ninguém pode duvidar que ali há a mais pura, cristalina e inequívoca manifestação de autonomia e de vontade.
As regras do Direito das Sucessões não são alteradas há anos. As razões econômicas, patrimoniais e patriarcais sempre falaram mais alto para manter a lei exatamente como está. Mas a revolução digital nos obriga a questionar conceitos como, por exemplo, os herdeiros necessários que recebem, obrigatoriamente pela lei, uma parte da herança. Não é simples nem fácil alterar esses conceitos, muito menos aprovar projetos de lei nesse sentido, porque vamos lidar com conceitos econômicos e morais que não interessam ao Congresso Nacional alterá-los.
Quais são alguns tipos possíveis de testamento?
Mas como a vida é maior que o Direito, pouco a pouco é possível ver a adaptações ao nosso tempo, mesmo permanecendo, ainda, dentro da tradição e da formalidade; é o que vemos, por exemplo, com o testamento genético, ético, vital e digital.
O testamento genético ou biológico é o realizado por aquele que tem material genético preservado (espermatozoide, óvulos e embrião), estabelecendo ali instruções sobre a sua utilização e descarte.
A única regra que regulamenta o assunto é a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal da Medicina que trata sobre a reprodução assistida após a morte, desde que autorizada previamente pelo morto. O assunto ainda gera muita polêmica e estamos longe de termos uma lei nesse sentido.
Testamento ético, por sua vez, é uma expressão utilizada pelo Direito Americano (Ethical Will) para tratar sobre o testamento em que se transmite aos familiares ou outros herdeiros, valores menos patrimoniais e mais morais, espirituais, conselhos, condutas ou experiências que sirvam de reflexão a quem se destina. Muito se assemelha ao codicilo – ou testamento anão – mas se diferencia dele por trazer consigo, em sua essência, um conteúdo imaterial, de transmissão de valores morais e éticos. Tais disposições podem, obviamente, constar em qualquer forma de testamento, inclusive em conjunto com outras disposições de última vontade.
O testamento vital, também conhecido como “consentimento informado” ou “diretivas antecipadas de vontade”, é a última disposição de vontade, mas para ser cumprida antes da morte, ou melhor, nos momentos que antecedem a morte, a pessoa precisa declarar que não deseja o prolongamento artificial de sua vida, dependente de aparelhos, remédios ou nutrição forçada ou que, em situações em que venha a perder a consciência de modo prolongado, seus negócios sejam geridos por determinada pessoa e segundo determinadas instruções.
O número de testamentos vitais tem crescido no Brasil. Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil, foram registrados 50 testamentos em 2010, mas em 2015 esses registros subiram para 600. Esses dados vêm ao encontro de uma das grandes questões atuais do Direito Civil que é a autonomia da vontade, mesmo no final da vida. Também estamos longe de termos uma lei aprovada.
Por fim, o testamento digital – nome que ainda está em construção – surge da necessidade de garantir aos herdeiros a transmissão de todo os conteúdos de contas digitais. Oito em cada dez brasileiros estão conectados, por exemplo, ao Facebook. Mais de 1 milhão de pessoas de todo o mundo tem seus dados nessas redes e muitos deles continuam após a sua morte. Enquanto não temos nenhuma lei aprovada nesse sentido, é possível nomear um administrador digital para depois da morte, e assim a página se transforma em um memorial em que o gestor pode fixar um post descritivo, alterar fotos de perfil e de cada e aceitar os futuros pedidos de amizade.
Ir de encontro com o nosso fim talvez seja a nossa maior angústia. Por isso lidamos tão mal com a maior certeza da vida. Mas é preciso enfrentar e planejar a destinação de nossos bens. Assim, pelo menos poderemos evitar ou diminuir brigas entre os herdeiros, especialmente com a triste realidade dos processos judiciais de inventários que não acabam nunca.